Análise da Música Brasileira – Parte 3

Análise das Composições: Letras

Nesta seção será analisada a produção dos artistas brasileiros sob o prisma das letras, buscando identificar as principais características das composições a partir de 4 indicadores: a raridade do vocabulário[1] utilizado, a quantidade de palavras únicas, o percentual de palavras únicas no vocabulário e a quantidade de músicas.

De pronto, vamos tentar visualizar a distribuição dos artistas nessas quatro dimensões:

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Quanto mais à direita no gráfico, maior a raridade do vocabulário do artista, o que significa dizer que, em média, os termos utilizados por ele são menos utilizados pelos demais. Observe que esse indicador tende a valorizar, no caso das letras, artistas que atuam sobre temáticas específicas ou regionalizadas. O campeão nesse quesito é a banda de Rap/HipHop Facção Central. Os outro quatro artistas com maior raridade do vocabulário incluem as bandas amazonenses Boi Garantido e Boi Caprichoso e os dois grupos Gospel Harpa Cristã e Cantor Cristão.

Estão retratados pelo extremo direito do gráfico a temática folclórica amazonense, das canções de louvor e da violência urbana. Vemos claramente essas especificidades nas 3 nuvens de palavras abaixo (fácil saber quem é quem):

Já imaginou juntar MPB e Rap? Quanto mais acima no gráfico de bolhas maior a quantidade de palavras distintas utilizadas pelo artista. É aí que se juntam os rappers e a MPB, com letras longas e de vocabulário variado. O Grupo Facção Central, incrivelmente, conseguiu o marcar os extremos nos dois eixos do plano.

Mas a existência de extremos prejudica a visualização das outras duas dimensões dispostas no gráfico: a quantidade de músicas e o percentual de palavras únicas. Vejamos então um gráfico exclusivo pra elas:

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Existe uma clara correlação aqui. Quanto mais músicas o artista tem, menor o percentual de palavras distintas em sua obra, o que faz todo o sentido, já que com uma maior quantidade de músicas fica quase impossível não se repetir. Veja o caso de Aviões do Forró e Garota Safada. Com as duas primeiras colocações em quantidade de músicas, têm um vocabulário extremamente repetitivo!

Eu sei o que você está pensando: “Talvez o mais interessante seja criar um indicador combinado, tipo Quantidade de Músicas x Percentual de Palavras Únicas“. Aí sim teríamos uma visão clara do quanto o artista conseguiu produzir sem se tornar repetitivo. Eis então o ranking pelo índice combinado:let_ranking_combinadoObserve que o que o ranking faz é privilegiar os artistas que se posicionaram mais a Nordeste do gráfico antecedente. Isso parece refletir melhor uma provável medida de variabilidade do vocabulário.

Outro ranking combinado útil seria a razão quantidade de palavras únicas / quantidade de músicas. Isso resultaria na média de termos únicos das letras do artista. Não precisa nem de gráfico. O Rap/HipHop domina sozinho. Entre os 10 maiores, temos 6 do gênero: Mv Bill, Facção Central, Emicida, Projota, Gabriel, o Pensador e Planet Hemp.

Vejamos, enfim, os rankings de artistas e de gêneros, pelos indicadores de Quantidade de Palavras Únicas e por Raridade do Vocabulário.

Ranking dos artistas e gêneros, pela quantidade de palavras distintas utilizadas.

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A amplitude do vocabulário, como já visto, junta Rap e MPB. Destacam-se no primeiro grupo Faccção Central, Apocalipse-16 e Racionais MCs. A MPB marca lugar com os papas Chico, Caetano, Bethânia e Gil. Aparecem também dentre os Aurélios da música a dupla sertaneja clássica Tião Carreiro e Pardinho, o regional Teixeirinha e o sambista Martinho da Vila.

Ranking dos artistas e gêneros, pelo indicador de raridade das palavras utilizadas.

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A raridade das letras é o reflexo dos vocabulários de nicho, como descrito no primeiro gráfico. Isso explica Rap, Regionais e Gospel liderando o ranking de gêneros (ou será que o vocabulário mais erudito da MPB que seria um nicho?). Entre os 10 artistas com maior raridade do vocabulário aparecem os Garotos Podres, cujo nicho seria, digamos, o dos palavrões, vide esta linda canção natalina da banda:

“Papai Noel filho da puta. Rejeita os miseráveis. Eu quero matá-lo. Aquele porco capitalista. Presenteia os ricos e cospe nos pobres. Presenteia os ricos e cospe nos pobres. Mas nós vamos sequestrá–lo e vamos matá-lo. Por que? Aqui não existe natal! Aqui não existe natal! Aqui não existe natal! Aqui não existe natal!” (Garotos Podres)

Melhor do que “Então é natal”.

E o que a similaridade entre os vocabulários dos artistas tem a nos dizer?

Tal qual feito na análise dos acordes, tentei aqui reagrupar os artistas brasileiros de acordo com a similaridade do vocabulário utilizado, fazendo uso de técnicas de clusterização e análise de textos. Os resultados mostram que praticamente existem 5 grandes grupos de temas abordados nas músicas brasileiras. Vou representá-los com nuvens de palavras e exemplificar os artistas que se aproximam de cada grupo:

Grupo 1: Paixões Bem Sucedidas, ou Antes Éramos 3, Eu, Você e a Felicidade (14-bis, Agnaldo Rayol, Agnaldo Timóteo, Araketu, Artpopular, Asa de Águia, Claudinho e Buchecha, Babado Novo, Banda Calypso, Banda Cheiro-de-Amor, Banda Eva, Limão com Mel, Leonardo e Tom Jobim).

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Aparentemente, aqui estão letras que retratam relacionamentos em suas melhores fases. Não à toa, temos presença de bandas de Axé, como Asa de Águia e Araketu. Sem sofrência no carnaval, certo?

Grupo 2: Paixões Desastrosas, ou Agora Somos só 2, Eu e a Saudade (muitas duplas sertanejas e também Wanessa Camargo, Wesley Safadão, Waldick Soriano, Negritude Junior, Dolores Duran e … Clarice Falcão).

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Aqui estão letras que retratam amores mal sucedidos, paixões acabadas, traições etc. Sobram lágrimas.

Grupo 3: Engajamento Social, ou Capacidade de Escrever sobre Algo Além de Relacionamentos (Muito Rap e HipHop, além de Adriana Calcanhoto, Alceu Valença, Belchior, Caetano Veloso, Charlie Brown-jr, Chico Buarque, Chico César, Djavan, Fagner, Legião Urbana, Lenine, Raimundos, Raul Seixas, Zeca Pagodinho e … Falcão).

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Existe uma grande preponderância das temáticas de relacionamentos na música brasileira. 64% dos artistas estão mais próximos dos primeiros 2 grupos! Isso faz com que artistas que tratem dos temas mais diversos sem cair no lugar comum de rimar amor com dor fiquem agrupados aqui, onde preponderam a crítica social e as paisagens urbanas. Veja a clara semelhança entre essas músicas de Mv Bill, Raimundos e… Gilberto Gil.

“Minha condição é sinistra não posso dar rolé, não posso ficar de bobeira na pista, na vida que eu levo eu não posso brincar. Eu carrego uma nove e uma hk, pra minha segurança e tranqüilidade do morro. Se pa se pam eu sou mais um soldado morto, vinte e quatro horas de tensão. Ligado na policia bolado com os alemão, disposição cem por cento até o osso. Tem mais um pente lotado no meu bolso.” (Mv Bill, Soldado do Morro)

“Você com a arma do lado, tome cuidado na briga que esse rei na barriga tá ficando velho. Alto lá nego doido, tá com medo pra que veio, tá com perna bamba de quem vai morrer. Eu tô cansado da tv e do bombardeio da moda, manda comprar tudo que eu ver. Tudo que ela tem pra vender. Eu tô cansado eu sou um calo nos dedo da mão na roda que não para de crescer. A lei não sabe a diferença o que é ser e ficar louco, o remédio é tão forte que mata cada dia um pouco. Se todo excesso fosse visto como fraqueza e não como insulto já me tirava do sufoco.” (Raimundos, Baile Funk)

“O sorvete é morango, é vermelho! Oi, girando e a rosa é vermelha! Oi girando, girando… É vermelha! Oi, girando, girando… Olha a faca! (Olha a faca!). Olha o sangue na mão. Ê, José! Juliana no chão. Ê, José! Outro corpo caído. Ê, José! Seu amigo João… Amanhã não tem feira, não tem mais construção, não tem mais brincadeira,  não tem mais confusão.” (Gilberto Gil, Domingo no Parque)

E aí? Dá pra dizer que não há intersecção entre os temas abordados?

Vale um drill-down no grupo pra tentar encontrar subgrupos e novas perspectivas?

Grupo 4: Levante as Mãos pro Céu… e Dance (Mundo Gospel, como Aline Barros, Catedral e Filhos do Homem, além integrantes do Reggae, tais como Filosofia Reggae, Javaroots, Natiruts e Ponto de Equilíbrio).

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Gospel e Reggae juntos! Sei lá, entende? Seria presença de letras repletas de espiritualidade, como as da Tribo de Jah?

“Eu quis encontrar a razão, sondei o sol, sondei a chama, Que emana e incendeia
cadeias de estrelas… A razão superior e o porquê… A razão de todo esplendor… Do sopro que habita cada ser… Da fonte de luz e calor… Há uma essência suprema… Uma excelsa além da existência… Uma força motriz que move o universo.” (Tribo de Jah, A Razão e o Porquê).

Grupo 5: Paisagens do sul (Universo da música tradicional sulista, como Garotos de Ouro, Grupo Minuano, Os Campeiros, Tche Boys, Tche Garotos e Tche Guri, mas também junta o jovem-guardista Eduardo Araújo e a banda de forró Labaredas).

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Alguém aí explica o que é gaiteiro?

Chega ao fim a terceira parte. Vimos que o processo de clusterização de artistas identificou também as principais áreas temáticas abordadas nas letras da música brasileira. Uma jeito melhor de identificar esses temas seria fazer uma modelagem de tópicos nas letras (sem a necessidade de classificar artistas, como aqui) e criar clusters só dos textos.

E os indicadores das letras para todos os artistas? Veja nesta tabela.

Se gostou, compartilhe! E aguarde a quarta e última parte do estudo: os resultados juntando letra e acordes + ranking dos artistas considerando a complexidade das músicas + análise temporal da complexidade das composições (bônus provável).

Todas as partes do estudo: PARTE 1PARTE 2 – PARTE 3 – PARTE 4

[1] Cada palavra utilizada pelo artista foi pontuada pela razão entre a quantidade de vezes em que o próprio artista a utiliza e a quantidade de vezes em que outros artistas a utilizam. Assim, quanto mais rara for a palavra maior sua nota. Dúvidas adicionais sobre os métodos / critérios? Volte à Parte 1.

25 comentários sobre “Análise da Música Brasileira – Parte 3

  1. Caro Léo bom dia. Excelente sua pesquisa e análise.
    Faço apenas uma consideração: Harpa Cristã e Cantor Cristão citados acima como grupos musicais gospel na realidade são dois hinários utilizados nas igrejas evangélicas tradicionais que contém traduções de Hinos clássicos escritos e musicados por diversos autores, em sua maioria americanos e britânicos.
    Nestes dois hinários não há nenhum compositor brasileiro.
    Grande abraço.

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  2. INTERESANTE E OPORTUNA ANÁLISE. AQUI NA UNb TRABALHAMOS EM LITERTURA COM AS LETRAS DAS CANÇOES E TEMOS VÁRIAS TESES SOBRE CANCIONISTAS DE VPARIAS PAREAS PUBLICADAS, SE INTERESSAR. NÃO ENTENDI OS NOMES DE BETHÂNIA E GAL FIGURAREM POIS NÃO SÃO COMPOSITORAS. NO MAIS LOUVO O FÔLEGO E A CONTRIBUIÇÃO À REFELXÃO. UM ABRAÇO CORDIAL!

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  3. INTERESSANTE E OPORTUNA ANÁLISE. AQUI NA UNB TEMOS UM GRUPO DE PESQUISA QUE TRABALHA EM LITERATURA COM AS LETRAS DAS CANÇOES , COM APORTES TEÓRICOS VARIADOS. TEMOS MUITAS TESES SOBRE CANCIONISTAS DE VÁRIAS ÁREAS PUBLICADAS, SE INTERESSAR. FAÇO UMPEQUENO REPARO, TALVEZ POR NÃO TER TODO O TRABALHO EM MÃOS….NÃO ENTENDI OS NOMES DE BETHÂNIA E GAL FIGURAREM, POIS NÃO SÃO COMPOSITORAS, MAS INTÉRPRETES. NO MAIS, LOUVO O FÔLEGO E A CONTRIBUIÇÃO À REFELXÃO. UM ABRAÇO CORDIAL!

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  4. Leo, trabalho interessante. Só uma informação que talvez te seja úti: Harpa Cristã e Cantor Cristão não são grupos, mas hinários – livro que contém hinos e cânticos cristãos tidos como tradicionais. Esses hinários moldaram em grande parte o caráter músical de igrejas históricas tradicionais (Presbiteriana e Batista) e pentecostais (Assembléia de Deus).

    Um abraço e parabéns pela iniciativa da análise de dados. E gostaria de ver outras análises – pelo que vi você tem recebido diversos feedbacks e alguns dos insights realmente podem ser considerados no enriquecimento do seu trabaho!

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