Replicado de Política com Dados.
Em 2020 grande parte da população brasileira teve considerável perda de renda. Esta pesquisa da FGV aponta para um decréscimo de 20% na renda média do brasileiro. É sabido também que essa perda não atingiu de forma alguma o setor público, muito menos uma classe específica de servidores: os magistrados.
Essa categoria de funcionários do estado detém um leque bastante variado de acréscimos nas folhas, que podem incluir desde auxílio alimentação, moradia e saúde até reembolso de plano de internet.
Analisei aqui todas as folhas salariais de magistrados entre 2019 e 2020, considerando os dados disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça em sua página de transparência¹. O objetivo foi entender os principais fatores que fazem com que os salários superem o teto constitucional, atualmente de R$39293.
Foram analisados mais de 526 mil contracheques, que esmiuçam as remunerações de aproximadamente 24 mil magistrados (incluindo alguns já aposentados). Vamos aos resultados²:
→ Média líquida mensal varia entre R$ 28,5 mil e R$ 49,3mil, a depender do grupo de tribunais
Este quadro resume os recebimentos líquidos mensais de magistrados entre 2019 e 2020:
Observe que os recebimentos líquidos (já descontados Imposto de Renda e contribuição previdenciária) chegaram a R$ 49.359,40 no caso dos magistrados do CNJ. Além disso, as remunerações líquidas chegaram a aumentar 13% e 7%, na média, no caso dos Tribunais Regionais Federais e militares estaduais (TJMMG, TJMSP e TJMRS), respectivamente.
Houve redução do recebimento efetivo líquido no caso do CNJ (somou R$ 56 mil em 2019!) e dos TRTs (-12% e -10%, respectivamente). Nos TJs e Tribunais Superiores houve oscilação pouco significativa.
→ Remunerações brutas médias chegam a quase R$ 53 mil nos Tribunais de Justiça Militares e passam de R$ 57 mil no CNJ
O quadro abaixo resume os recebimentos brutos (todos os recebimentos, descontado apenas eventual “abate-teto”) mensais dos magistrados:
Os rendimentos brutos são o melhor parâmetro de comparação com a realidade brasileira, uma vez que os bancos de dados de salários do setor privado informam os valores antes do desconto de Imposto de Renda e contribuição previdenciária. Veja no quadro acima que houve aumento significativo nos valores brutos constantes dos contracheques dos magistrados dos Tribunais Militares, TRFs e Superiores. O menor valor médio bruto é de R$ 41.569,43, pago nos Tribunais Regionais do Trabalho.
→ Montante anual recebido é de R$ 535 mil na média. 1,2% dos juízes receberam mais de R$ 1 milhão em 2020.
Este seria um ranking das maiores remunerações de 2020:
Os valores anuais recebidos se distribuem conforme o gráfico abaixo:
Veja que a soma anual oscila em torno da média de mais de meio milhão por magistrado. Considerando os valores líquidos, essa média fica em R$ 379 mil.
→ Aumento do valores pagos nos TRFs deve-se principalmente ao pagamento de retroativos
Este quadro apresenta a variação dos valores médios pagos, dentre as tipologias de acréscimo salarial, nos TRFs:
Claramente esse componente extra-salarial, os retroativos, respondem por grande parte da variação. Veja que em 2019 a média paga em retroativos por magistrado foi de apenas R$ 60. Em 2020, essa média salta para R$ 4,9 mil. Os retroativos realmente tendem a apresentar grandes variações, pois dependem do reconhecimento (administrativa ou judicialmente) de direitos a receber referentes a contracheques anteriores. Exclusivamente pelos dados disponibilizados pelo CNJ não é possível aprofundar o entendimento sobre as causas desses pagamentos.
→ O teto remuneratório previsto na constituição foi ultrapassado em 63,4% das vezes, entre 2019 e 2020
A Constituição Federal prevê um teto remuneratório aplicável a todos os servidores públicos, incluindo magistrados. Esse limite é o subsídio (remuneração bruta) do ministro do STF, previsto em lei ordinária, com valor atual de R$ 39.293,00³.
Ocorre que diversos regramentos infraconstitucionais estabelecem exceções ao teto salarial, geralmente justificando a necessidade de se pagar parcelas classificadas (convenientemente) como indenizatórias.
Pelos dados já apresentados (vimos que a MÉDIA das remunerações brutas nos TRFs, por exemplo, foi de R$ 51 mil), é nítido que esse limite é recorrentemente ultrapassado.
De fato, ao checar folha a folha, vemos que 333.862 dos 526.203 contracheques analisados apresentaram pagamentos acima do limite constitucional: isso representa 63,4% de pagamentos acima do teto.
Vale ressaltar que todos esses pagamentos são feitos, a princípio, dentro da lei. Aliás, é aí que está o problema: nossas leis são por demais permissivas na criação de exceções ao texto constitucional. Parte das parcelas remuneratórias consideradas “a parte” do teto são claramente justificáveis (um exemplo é o pagamento do 13º salário), mas outras são bastante questionáveis (auxílio saúde e moradia, por exemplo).
Para checar se o valor da remuneração estava acima do teto considerei o valor do salário bruto, somados todos os pagamentos adicionais, mas descontando eventual “abate-teto”, valor descontado de ofício da folha salarial no caso da soma das parcelas brutas (obviamente sem contar as parcelas classificadas como exceção à regra do teto) estar acima do limite.
Essa proporção varia de acordo com os grupos de tribunais:
Perceba que no mínimo 41% das folhas estão acima do limite estabelecido na constituição. No caso do CNJ, chega-se a 92%. Isso provavelmente decorre de ajudas de custo que por lei devem ser pagas aos magistrados que atuam no órgão. Embora não sejam indevidos ou ilegais, a recorrência desses pagamentos, sempre entendidos como de caráter indenizatório, mostra que a regra do limite remuneratório acaba sendo, para essa categoria de servidores, inócua.
→ Principais parcelas remuneratórias adicionais em 2020
Não usarei aqui termos pejorativos. Vou definir os pagamentos de parcelas adicionais como Parcelas Extra-Nominais Devidas, Uteis ao Reembolso Indenizatório, Concedidas e Adicionadas por Lei ao Holerite de “OtoridadeS”.
Contabilizei aqui o montante total pago em 2020 a magistrados, por tipologia de parcela remuneratória:
Os pagamentos retroativos, em 1º no ranking, podem ser referir a pagamentos atrasados de qualquer uma das tipologias existentes. A Gratificação Natalina, em 2º, é o 13º salário do serviço público. As indenizações de férias se referem à “venda” de férias por magistrados. Isso é decorrência da previsão de 60 dias de férias para juízes (onde até 30 podem ser recebidos em indenização, o que na prática cria uma espécie de 14º salário).
→ Ao longo dos anos, o valor total em “acréscimos” aumentou
A mesma tendência é observada ao dividirmos o volume anual pelo número de magistrados com contracheques divulgados:
Esses gráficos mostram que, daquela média salarial acima de meio milhão, uns R$ 150 mil vêm desses acréscimos que pingam rotineiramente na conta dos magistrados, pra alegria deles, e tristeza do resto da população, que banca.
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Mais uma vez vale ressaltar que todos os tipos de adicionais aqui detalhados são previstos em lei, e pagos, a princípio, devidamente. O problema, na verdade, é justamente esse (ser legal). Se fossem flagrantemente ilegais, órgãos de controle teriam agido. Sendo legal, nos resta criticar e cobrar por mudanças na lei.
Na busca de resolver distorções como as apresentadas nessa análise, projetos de lei tramitam há muitos anos no Congresso. Esses textos visam limitar a criação de parcelas remuneratórias que fujam à regra do teto salarial, por exemplo. Um deles é o PL 6726, criado pela “Comissão Externa do Extrateto”, do Senado Federal, em 2016. No âmbito da crise do Coronavirus, projetos surgiram em 2020 visando bloquear ou reduzir o pagamento dessas parcelas, mas foram ignorados por grande parte do parlamento. No momento, o principal espaço para mudanças é a PEC da Reforma Administrativa, que veio sem incluir a magistratura mas pode ainda ser emendada.
Os dados
Os dados utilizados foram baixados diretamente do painel disponibilizado pelo CNJ, uma excelente ferramenta de transparência.
Para análise, utilizei Python. O código está aqui, no Github.
[1]Painel de remuneração de magistrados, disponibilizado pelo CNJ: https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l%2FPainelCNJ.qvw&host=QVS%40neodimio03&anonymous=true&sheet=shPORT63Relatorios
[2] Resumo de definições utilizadas e do escopo da pesquisa:
- O “abate-teto” foi um campo calculado a partir do valor absoluto do campo “Retenção por Teto Constitucional (8) (R$)” (pois aparece com valor positivo ou negativo, a depender do tribunal).
- A “remuneracao_bruta” significa todos os recebimentos do mês mais diárias e remuneração de outros órgãos, descontado o “abate-teto”.
- A “remuneração liquida” equivale à coluna “Total (10) + (11) + (12)”.
- Desconsiderei remunerações inferiores a R$ 20 mil, pois não existe tribunal que remunere abaixo desse patamar. Valores menores possivelmente decorrem de ajustes de folha, que não interessam a esta análise.
- Desconsidero magistrados denominados “0” nas tabelas do CNJ, pois indicam que são linhas de somatório das tabelas, enviadas por engano pelo tribunal.
- Considero apenas folhas de 2019 e 2020.
[3] Em 2020, o STF estendeu o limite federal à magistratura estadual: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=456773&ori=1.